O anúncio de que a sequência do estrondosamente bem-sucedido Coringa (2019) seria um musical gerou polarização e surpresa. Primeiro, a polarização se deu pela própria natureza lúdica e teatral que veio a caracterizar o gênero musical e sua relação inconstante com a audiência contemporânea, já acostumada a uma tradição “realista” que predomina no cinema comercial. A surpresa, por sua vez, veio de permitir tal polarização no passo seguinte de um projeto que, ancorado em uma estética de seriedade e em alguma retórica de denúncia social, angariou mais de 1 bilhão de dólares mundialmente e viu Joaquin Phoenix, que assina algumas das mais interessantes interpretações do cinema estadunidense, finalmente conquistar um Oscar de Melhor Ator.
Talvez fosse possível, ainda, para aqueles que não repudiam imediatamente um filme com música e dança, acreditar que a decisão pelo formato poderia gerar algo inventivo, expandindo a gramática fílmica ao alcance do diretor Todd Phillips e promovendo uma experiência ousada dentro da adaptação de um personagem de quadrinhos. Essa crença, no entanto, precisaria ignorar explicitamente um sintoma muito presente já no primeiro filme: se, na direção, ele foi capaz de extrair interesse e drama da encenação, enquanto roteirista, encarregado de tornar um dos mais famosos vilões dos quadrinhos em uma espécie de anti-herói, Phillips não conseguiu estabelecer uma tese que desse conta das contravenções morais do seu protagonista.
Esta incapacidade levou a consequências indesejáveis: quando Arthur Fleck (Phoenix) reage à brutalidade e negligência de seu cotidiano no primeiro Coringa, ele o faz entrando em uma escalada de violência que culmina em um episódio de aclamação pública, no qual uma multidão o cerca e repete seu nome em júbilo, logo após o personagem cometer um homicídio premeditado durante um programa de televisão. Consequentemente, mesmo com lucros e láureas, o longa foi imediatamente criticado por servir como um símbolo incel (termo aglutinado de involuntary celibate, ou celibato involuntário).
Para os desavisados: incels são homens – comumente jovens, brancos e heterossexuais – que integram comunidades online baseadas em um sentimento compartilhado de rejeição social e inadequação generalizada, devido a aparência física, status financeiro e/ou falta de relação com o sexo oposto. A visão de mundo cultivada nesses fóruns é desesperançosa, misógina, violenta e consideravelmente complexa, já deixando marcas na linguagem coloquial (a exemplo das terminologias “redpill” e “macho beta”) e gerando episódios de suicído e terrorismo doméstico nos Estados Unidos.
Essa possível associação do primeiro filme com a subcultura destrutiva incomodou Todd Phillips profundamente, e o seu desejo resultante, de desassociar o que deveria ser um conto sobre as consequências de uma sociedade negligente dessa interpretação extremista, é o motor que impulsionou a continuação dessa história. Surge então Coringa: Delírio a Dois (2024), no qual o diretor, tentando dar conta das nuances do Coringa/Arthur Fleck, surge com um drama de tribunal/filme de romance/origem de vilão/musical – fracassando de maneira retumbante em quase todos seus esforços.
Delírio a Dois é situado e cantado predominantemente em dois ambientes: dentro do Asilo Arkham e no tribunal. No primeiro, Fleck inicia o filme depressivo e esquálido, aguardando a conclusão dos trâmites legais que devem condená-lo à morte, até conhecer Lee (Lady Gaga), a Harley Quinn, por quem se apaixona de maneira instantânea e avassaladora. Quando o enredo chega à sala de julgamentos, os personagens já são um casal devoto, com Lee estimulando Arthur a abandonar sua estratégia de defesa legal baseada em doenças mentais e assumir, orgulhosamente, a identidade de Coringa. Regozijado com paixão, o protagonista entra em devaneio, e canta.
O uso da canção como rompante fantástico da realidade e acesso a um espaço cênico idealizado, no qual tudo pode servir à expressão da psicologia de um personagem, é comum no gênero musical. A aplicação dessa estratégia, inicialmente curiosa, na sequência de um filme de super-vilão (ou era anti-herói?) talvez almejasse redimir Arthur justamente nesses espaços. Se, no primeiro filme, a sociedade impulsiona o personagem à insanidade reativa e o diretor à incerteza moral, talvez o musical glamouroso, que escapa da realidade, permitisse cenas de ternura e beleza, humanizando o protagonista e lhe permitindo alguma motivação além da vingança contra o mundo.
Arthur canta quando ama, e Harley se une a ele para integrar suas fantasias. Phillips, no entanto, filma como se só tivesse ouvido falar que musicais existem. Nada da linguagem clássica dos musicais a que o filme faz referência com seu catálogo de showtunes do cancioneiro americano é valorizado. A dimensão corporal da dança, os cenários que se assumem como palco, um jogo de câmera que faça sentir o conteúdo lírico, the glitz and the glam – tudo padece dentro do jogo de câmera de Phillips.
Não se trata de uma questão de que há somente uma maneira tradicional e correta de abordar o gênero musical no cinema. Lars Von Trier, cineasta muito mais denso e polêmico que Phillips, deturpou com sucesso o gênero em Dançando No Escuro (2000), estruturando uma narrativa na qual a performance sempre acelera o processo de derrota de sua protagonista. Mas, enquanto o dinamarquês cria um anti-musical com atenção e detalhe, espelhando negativamente o gênero de forma como só um bom conhecedor do mesmo seria capaz de fazer, Todd Phillips demonstra uma ignorância particular.
Os planos médios, takes longos, zooms infinitos e câmera lenta constante que são utilizados para registrar a performance não bebem diretamente das convenções que já permitiram ao musical, outrora, ser sucesso comercial. Também não buscam deturpar e inverter o glamour, para exaltar a subversão do personagem de Joaquin Phoenix. Tudo que Phillips faz e, principalmente, tudo que deixa de fazer, está claramente ancorado numa certeza inabalável da importância e seriedade de sua história.
A música, portanto, nunca envolve a audiência, não permitindo divertimento superficial e muito menos envolvimento emocional com os amantes insanos. Quando, em meio aos shows, ocorre algum ato de violência, este não possui impacto o suficiente para ser tão dramático quanto claramente deveria. Estendendo seu projeto de autorismo do primeiro filme, que migrou um personagem dos quadrinhos a um status de "filme sério e sombrio", o diretor filma a metade cantada de sua sequência sem nenhum prazer, e pede que sua audiência se interesse por isso. O mais interessante desse gesto obtuso é que ele ilumina não só os problemas de Delírio a Dois, mas, de maneira retroativa, esclarece o pânico com as questões do primeiro Coringa. Se, na sequência, a gramática de todo um gênero é ignorada em favor de uma prece de autoria, as intercorrências no primeiro longa do palhaço surpreenderam seu realizador pelo menosprezo do que a figura do Coringa significa na imaginação coletiva.
O maior inimigo do Homem-Morcego surgiu nos quadrinhos ainda nos anos 40, e ganhou sua primeira adaptação em live-action duas décadas depois pelo ator Cesar Romero, na série clássica do Batman de Adam West. Desde então, tem sido explorado em múltiplas versões: quadrinhos, séries de TV, animações, videogames, mochilas, cadernos, posteres, camisetas, sapatos, estojos, relógios, tatuagens e seja mais lá o que se pode imaginar.
O Palhaço do Crime de Gotham é uma figura perene na cultura de massa há gerações, mesmo para aqueles que não consomem quadrinhos ou tem familiaridade com super-heróis, e com uma presença tão extensa dilui-se a ideia de sua essência, até que ele se torne menos personagem e mais arquétipo, identificado por características básicas: a maquiagem de palhaço, a risada aguda, o sadismo criminoso e vilanesco. Sim, pois em suas distintas encarnações, independente do formato, estética, narrativa ou intérprete, o Coringa é sempre um vilão, e evocar sua figura é gerar em sua audiência uma expectativa com o encontro dessa vilania, gestada há mais tempo que qualquer projeto de franquia multibilionária ou campanha de premiação.
Seguindo a cultura das HQs, o Coringa já teve múltiplas origens e processos para se tornar um criminoso, mas nunca nenhuma delas altera o que a figura desperta e como ela deve operar. Talvez, justamente por isso, a encarnação de Heath Ledger em O Cavaleiro das Trevas (2008, dir. Christopher Nolan) sempre surja como um forte candidata à melhor versão do personagem: em um roteiro característico de Nolan, que busca racionalizar a figura de um homem vestido de morcego, Ledger teve a permissão de interpretar somente esse arquétipo e elevá-lo a outra potência, desprezando diegeticamente a necessidade de uma história de origem que explicasse suas motivações. O Coringa é como é, por ser o que é.
Quando o Coringa de Arthur Fleck se torna célebre no fim do primeiro filme, mesmo que justificado por uma vida de negligência, abuso e dor muito bem detalhada, Phillips lida, como todo filme tem que lidar, com um “espírito” maior que este personagem veio a simbolizar após tantas décadas nas mídias de massa, e o faz de forma desavisada. Não é um argumento de desqualificação moral que se estrutura aqui; a possível adoção do texto fílmico por uma comunidade incel diz mais sobre o olhar reativo deste grupo do que sobre um senso de responsabilidade de Phillips, a quem não cabe a criação, somente, do que parece imune à integração por discursos de ódio que são, por sua própria natureza, operações de corrupção.
De fato, este não é o primeiro nem mais violento uso da mitologia do Homem-Morcego associado a discursos ou mesmo atos hediondos – em 2012, doze pessoas foram assassinadas nos EUA em uma sessão do terceiro capítulo da trilogia de Nolan. Entendendo, portanto, que Phillips não tem como prever e remediar o mundo em que vive, permanece triste a constatação de que o filme de 2019 surge particularmente tendencioso a esse tipo de subversão, ao concretizar seu protagonista com o mesmo movimento com qual o diretor executa o gênero musical: o de utilizar-se de um universo pré-existente para contar sua história, ao mesmo tempo que ignora as maneiras pelas quais este se estrutura e quais questões carrega.
Dentro de um ímpeto de realinhamento dessa abordagem, até a parte não cantada do Delírio é também prejudicada. Após várias canções filmadas com descrença, o clímax se inicia com Arthur arrependido e maquiado, segurando um microfone, anunciando que o Coringa não existe. É um gesto através do qual o personagem procura aceitar as consequências do horror que provocou, mas que parece espelhar e prever o comportamento de seu realizador em entrevistas recentes.
Após atravessar os primeiros atos apresentando toda ação como densa e incontornável, através de fantasias musicais, planos extensos e closes que parecem querer imprimir as linhas de expressão de Phoenix na tela da sala de exibição, o filme chega a uma síntese que não pode jamais ser recompensadora: incapaz de redimir o personagem, decide que ele nunca existiu. Abandonado então por Harley e rejeitando os fanáticos que nele se espelham, Arthur Fleck morre pelas mãos de um coadjuvante sem relevância. Mata-se a figura do homem para tentar encerrar o expurgo do fantasma do palhaço, novamente ignorando que o Coringa nunca precisou de Arthur Fleck para existir, e que a morte do personagem de Phoenix não é o suficiente para exorcizar sua figura da mente da audiência.
Coringa: Delírio a Dois fracassa na tentativa de tratar com urgência as consequências indesejáveis do primeiro filme, infelizmente, por fazê-lo sem buscar compreender o que as catalisou em primeiro lugar. Todd Phillips, em sua ânsia pela assinatura criativa, blinda-se de ser atravessado pela carga pré-existente nos signos que decide operacionalizar, se tornando incapaz de conceber, formal e tematicamente, uma linguagem que dê conta da retórica moral e da proposta estética de sua obra.
Não se trata de temer personagens moralmente dúbios, da obrigação de condená-los, de limitar o cinema às tradições de gêneros cinematográficos ou às versões originais de quadrinhos (não creio que um verdadeiro apreciador de nenhuma das artes deveria defender isso). O que falta é o respeito de compreender a riqueza contida nas referências, que já é conhecida pelo público e compõe sua recepção, mesmo que só de maneira instintiva e sensível. Cantar a fantasia da própria mente será sempre uma proposta válida, mas pouco vale a canção que, para ecoar, precisa tornar o mundo em algo vazio.
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