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"Conclave": Os Vitrais e O Mistério

Foto do escritor: Felipe DuarteFelipe Duarte
Ralph Fiennes em Conclave (Foto: Divulgação/ Diamond Films)
Ralph Fiennes em Conclave (Foto: Divulgação/ Diamond Films)

“Então Jesus lhe disse: Porque me viu, você creu?

Felizes os que não viram e creram.”

João, Capítulo 20, versículo 29


Ainda no primeiro ato de Conclave, uma curta montagem indica a força formal e temática do longa de Edward Berger: chegam ao Vaticano os cardeais, com batinas rubras e luxuosos crucifixos dourados, se cumprimentando em gestos comedidos que, logo mais, compreenderemos menos como coleguismo e mais como estratégia política. Em imagens que facilmente comportariam personagens adolescentes em um colégio qualquer, os sacerdotes formam pequenos círculos onde cochicham assuntos indiscerníveis, enquanto olham por cima dos ombros, se isolam para utilizar seus iPhones (tão rubros quanto as batinas) e tragam de seus cigarros e vapes. Mediante sua convocação para dentro do prédio, deixam para trás bitucas queimadas e o retrogosto de um complô. 


Esses homens estão ali convocados para compor o Colégio que determinará o próximo pontífice e, consequentemente, o rumo da própria Igreja, sempre longeva e em crise. As possibilidades de renovação com um novo Papa alinham os homens em vertentes opostas, que buscam recrudescer as práticas tradicionais ou negociá-las com valores mais contemporâneos. Interessa a Berger explorar o momento de transição e, com o exímio trabalho do cinegrafista Stéphane Fontaine, contrastar os vapes com os crucifixos, a intriga discreta com a opulência cerimonial, a solidariedade católica com o regimento eclesiástico, mas sem necessariamente buscar síntese. Como exemplificado na montagem referida no primeiro parágrafo, ao conclave cabe o debate dos princípios da fé e da Igreja, mas a Conclave resta menos espaço para retórica. Estamos aqui não para crer, mas para testemunhar. 


E esse testemunho não é convidado a ser crítico, apesar de descrente. Somos induzidos a  abordar de maneira um tanto respeitosa os apostólicos romanos, conforme Berger materializa nosso olhar com um protagonista virtuoso, na figura do Decano Lawrence (Ralph Fiennes). Íntimo do último papa, cabe ao enlutado cardeal organizar o Conclave, de forma a averiguar os processos e garantir sua integridade. Ele mesmo elegível, surge como um humilde, julgando-se inapto para a posição em razão de sua crise de fé. Mas se Lawrence é o simulacro de nós, boas e alheias testemunhas, a sua descrença não serve para discutir a fé, e sim para lográ-lo uma espécie de ferramenta ética ideal para desvelar o Vaticano. Demovido de paixões e dogmas além daqueles já postos por um certo senso comum liberal e laico, o Decano confronta, revela, condena e absolve as contradições dos outros cardeais. 

Foto: Divulgação/ Diamond Films
Foto: Divulgação/ Diamond Films

Tedesco (Sergio Castellitto), Tremblay (John Lithgow), Bellini (Stanley Tucci), Adeyemi (Lucian Msamati) e Benitez (Carlos Diehz) são outros possíveis Santos Padres, e aparecem com seus dramas pontuais, em órbita de Lawrence. São terreno a ser mapeado por Conclave, revelando as dinâmicas políticas que realmente dão forma ao processo da eleição papal e, com isso, as distintas formas de contradição presentes na instituição católica. A luxúria de Adeyemi, a avareza de Tremblay e até a inveja do tão bem intencionado Bellini compõem  o cenário do drama, confrontadas pela ética de Lawrence, uma por vez. Nota-se, então, que o roteiro de Peter Straughan organiza seus pecados e os embates e resoluções do nosso arauto protagonista com cada coadjuvante de maneira episódica. Consequentemente, sentimo-nos como mapeadores morais dos corredores e câmaras do Vaticano. Uma vez encontrada a fronteira final em uma das direções, damos meia volta para descobrir os outros limites que compreendem nossa exploração. 


Toda essa cartografia testemunhal proposta por Berger é eficiente. Conforme o enredo avança, são adicionados mais detalhes nesse belo verniz, com diferentes cores e relevos. Ele preenche o nosso olhar, sem esconder as intenções ilustrativas que tem para com a Igreja – e não para com a fé em si própria. Até mesmo o surgimento mais humilde de Benitez (com roupas mundanas e filmado através da vidraça de uma secretaria) é indicativo do final que aguarda o personagem. Tudo é coeso e satisfatório, e pouco teria a falar sobre Conclave se não considerasse uma rachadura em seus ornamentos, provocada pelo impacto de seu elemento mais forte: Isabella Rossellini.

Foto: Divulgação/ Diamond Films
Foto: Divulgação/ Diamond Films

A sua Irmã Agnes parece se alinhar com uma tendência do cinema de 2024, no qual o olhar de personagens femininas representa uma catalisação nas temáticas de seus filmes, como acontece com Fernanda Montenegro em Ainda Estou Aqui (dir. Walter Salles) e Soheila Golestani em A Semente da Figueira Sagrada (dir. Mohammad Rasoulof). Mas esses outros olhares são sínteses em seus respectivos mundos, e, como já exposto, Berger não se interessa tanto pela síntese. Consequentemente, o olhar de Rossellini aprofunda pela ausência. O semblante rígido, o lábio franzido e o amargor de Agnes não são confrontados por Lawrence, e permanecem sem explicação. 


Se somos testemunhas da moral do Decano e dos pecados dos cardeais, à beata nos resta apenas mistério. Agnes também observa (melhor que nós) os segredos do Conclave, mas com tanta fúria e tanto poder se atém ao silêncio e à sua posição de subserviência hierárquica. Em um drama essencialmente político, nos qual os estratagemas são confrontados com ambição e ética, a assombrosa mulher de Rossellini parece ser a única realmente movida por fé. 


O peso da soberba atriz somado ao mistério de sua persona revelam que, apesar de belo, o vitral de Conclave, como boa ilustração, retira deste mundo boa parte de sua profundidade. Rossellini provoca curiosidade sobre o que há além dele e das paredes, adentrando na escuridão desconhecida, contra quais os vidros foram erguidos em primeiro lugar, e trai a beleza do testemunho calculado por Berger. 

Foto: Divulgação/ Diamond Films
Foto: Divulgação/ Diamond Films

Esse desafio do regimento do diretor nos demove da atividade de mapeadores. Deparamo-nos não com algo que se articula para entender ou almeja incluir-se, mas com um ente misterioso, que ali opera para além de sua disponibilidade de satisfatória representação. O mistério da fé se provoca no espectador, e revela uma outra possibilidade de filme, menos dogmático, perante o qual o esmero de Berger se revela limitado. 


Compreendemos que, buscando não exigir real crença de nós, Conclave articula um testemunho que se adequa a um possível olhar secular, mas bondoso, para com a Igreja. O vitral que ergue para preencher o olhar é honesto e, em vários momentos, encantador, mas não consegue saciar o assombro que suas rachaduras incutem no espírito de quem as encontra. A representação da ética, satisfatória na sua reafirmação de nossos próprios valores, parece limpa demais quando contrastada com o assombro da incerteza. Aquele que testemunha busca ser convencido a tornar-se fiel e, perante o vazio para além da beleza, precisamos de algo para acreditar.


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