Quando se fala em faroestes, tem-se em mente uma sequência de códigos imagéticos que surgiram e foram aprimorados ao longo do tempo. Citemos, por exemplo, No Tempo das Diligências (1939), de John Ford, cujo surgimento do herói se dá com um rifle na mão em um dos zoom-ins mais marcantes da cinematografia mundial. Ou como a paisagem, neste e em outros faroestes subsequentes do diretor, é abrigada em planos abertos onde, muitas vezes, os personagens centrais são diminuídos diante da imensidão daquele amontoado de rochas e poeiras. Caso optemos por avançar no tempo, encontraremos Sergio Leone com seu techniscope, que enquadrava a paisagem na horizontalidade, contrastando com os rostos de seus atores em close-ups extremos, como na conhecida sequência inicial de Três Homens em Conflito (1966). Então, quando os créditos iniciais de Estranha Forma de Vida (2023), de Pedro Almodóvar, surgem na tela, estão acompanhados da paisagem rochosa enquanto um dos protagonistas, Silva, vivido por Pedro Pascal, caminha em direção à cidade que abriga o homem que mudou sua trajetória passada.
Mais interessante que tal apropriação dos códigos westerns nesta abertura é como tal momento é interrompido pelo rosto do violeiro cantante de Manu Rios (dublando a música de Caetano Veloso). O close-up que poderia conversar com a tradição de Leone, na verdade, ganha outra dimensão na filmografia almodovariana. Explico: os planos fechados, alinhados a uma música que conversa diretamente com os sentimentos dos personagens, se ligam à tradição melodramática almodovariana. Ou seja, mais que uma releitura do faroeste, Estranha Forma de Vida é a união do melodrama às terras sagradas do western. Isto fica muito evidente em outro momento, já na metade final do filme, quando o personagem de Pascal vai em busca do filho, e o de Ethan Hawke o segue por aqueles caminhos sinuosos. Almodóvar poderia emular os trajetos desses protagonistas através de longos planos abertos, diminuindo-os em meio à paisagem.
Contudo, como todo bom melodrama, o sentimento dos personagens precisa ficar evidente, tanto pelo rosto quanto pela forma que a câmera os enquadra. Então, enquanto eles estão sobre seus cavalos, o cineasta opta por um super close-up dos rostos de seus protagonistas, mas não de forma fixa – ele faz com que a câmera se mova nervosamente. É uma situação delimitadora, criando um antes e um depois desse movimento em direção à casa de Pascal. A relação afetiva de ambos é contextualizada pela complexidade dos sentimentos, ditos e não ditos, que entram em emergência após algumas taças de vinho. O líquido vermelho representa não apenas o afrouxamento dos códigos masculinos, como também sublinha o desejo que é expressado em cada um dos olhares ("Não olhe para mim dessa forma", diz Hawke a Pascal em determinado momento). Os corpos jovens desses personagens gozam do desejo de forma extasiante, embebida, como se as armas com as quais eles quebraram o barril de vinho representasse de fato seus falos.
Agora, como já ficou claro, tais características formais demonstram o domínio de Almodóvar na construção do seu imaginário melodramático e na apropriação de diversos códigos de linguagem para criar algo que avance nos seus objetivos narrativos. Mas Estranha Forma de Vida esbarra naquilo que diversos projetos do cineasta contém em quantidades expressivas, seja direta ou indiretamente: libido. O curta-metragem (outro ponto que será levantado no próximo parágrafo) soa como algo bem formatado imageticamente, mas que escapa das possibilidades afetivas que poderiam ser exploradas. Não refiro-me aqui às comedidas cenas de sexo (o diálogo em escala de prazer e violência do pós-sexo carrega muito do sentimento), mas em como essa relação soa muito mais como algo distanciado que de fato tátil. Em outros termos, é como se a relação entre os personagens não alcançasse a textura almejada; há algo de plástico e plano na forma que os sentimentos, algo caro ao melodrama, são projetados.
Tal sentimento, muito provavelmente, se deve justamente à duração do projeto. A sensação que fica é de que existe uma potencialidade muito forte não só na narrativa entre os personagens, como também na utilização da imagética western para que haja um engendramento ainda mais interessante da história. E essa ideia se mostra quase provável pelo plano final, onde surgem os créditos: ali, um pequeno grupo de cavalos trotam em um pequeno espaço, quase como se buscassem uma fuga, enquanto a areia do faroeste os cobre calmamente. É uma clara alusão aos protagonistas, mas reflete, de certa forma, a própria estrutura de Estranha Forma de Vida, um filme guardado em um espaço reduzido, que deseja - e necessita - encontrar o mundo além das montanhas que cercam tais corpos. Fica, ao final, a sensação de que o velho oeste almodovariano merecia um pouco mais de refinamento, para que o gosto de incompletude arenosa não ficasse na boca quando o filme se encerra definitivamente.
Comments