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Burocracia e Ferramentas de Representação em "Napoleão"

Foto do escritor: MontezMontez


Existe, em torno da figura de Napoleão, uma forte representação visual, seja ela no concreto ou no imaginário. Em Napoleão (2023), Ridley Scott opta por enquadrar o momento da coroação de Josephine (Vanessa Kirby) de maneira muito semelhante à da pintura de Jacques-Louis David. Então, através de um breve movimento de câmera, ele leva o olhar do espectador para o pintor rascunhando aquela cena. Através dessa decisão estética, Scott desenha seu maior desejo na feitura fílmica: tentar representar, com uma grande carga de fidelidade, o que teria acontecido à época. Ao provocar esse encontro em dois retratos do momento, o realizador acaba sublinhando, involuntariamente, os pontos fracos de seu filme. Este texto não busca fazer uma comparação entre as duas formas artísticas, mas sim usar a obra de David como uma balança ou ponto de suporte em relação ao trabalho de Ridley Scott, ambas sobre o mesmo homem egóico, e como caminham em distinção naquilo que desejam retratar. Em outros termos, a utilização das possibilidades oferecidas por cada linguagem define o artista e, por consequência, a obra como um todo.



Façamos, como exercício inicial, uma breve análise da pintura supramencionada. The Coronation of Napoleon (1805-1807) traz, em seu centro, o instante em que Napoleão ergue a coroa para colocar em Josephine, seu grande amor. Cada detalhe, cada traço, imprime o ponto de extremo detalhismo, fazendo com que cada dobra dos mantos usados pelos personagens centrais da pintura se tornem, também, um ponto de foco. Ao utilizar uma iluminação mais dramática, David cria contrastes entre luz e sombra, contribuindo para a atmosfera solene e teatral da cena. O pintor também se utiliza de uma perspectiva linear para criar profundidade na tela. A arquitetura da catedral e as linhas convergentes destacam o espaço monumental em que a cerimônia ocorre, assim como a opção pela utilização do vermelho e dourado intensifica a sensação de opulência e domínio. Fica evidente, através dessa construção, que existe por parte de David uma noção da figura que ele representa na obra, e do espaço em si como um sumário da personalidade dele e do momento.


Isto posto, levemos nossos olhares para como Ridley Scott retrata Napoleão (Joaquin Phoenix) através da arte cinematográfica, especificamente nesta cena. A ideia de um homem que apenas queria promoção e acaba por colocar a coroa em si mesmo é bastante apelativa, tanto em narrativa quanto em imagem, e tal momento é o ponto culminante antes do processo de queda. Contudo, toda e qualquer decupagem dos planos parece interessada em passar o momento, ao invés de investi-lo. Uma troca de olhares de Josephine com um de seus amantes tem o mesmo impacto do instante em que a coroa é colocada na cabeça dela. O plano aberto, indicação de uma imponência, é pouquíssimas vezes aproveitado, e um dos mais marcantes é utilizado como amaciador do ego diretorial ao demonstrar ao espectador que o que se retrata ali é um momento documentado também em imagem. Ou seja, Ridley Scott transforma o ato de filmar em algo muito semelhante ao processo burocrático.



Não existe, de fato, por parte do diretor a vontade de desenvolver a persona construída em torno da imagem. Napoleão surge como um títere, que performa a fim de que Scott consiga desenvolver imageticamente suas cenas supostamente grandiosas de batalha. Mas até mesmo elas se tornam reféns dessa espécie de trabalho mecânico, com representações muito semelhantes de cada um desses momentos, com a batalha de Austerlitz se destacando mais pela engenhosidade dos acontecimentos em si que de fato pela representação cinematográfica do mesmo. Ora, se David em seu quadro entendia a grandiosidade a partir de um conjunto de elementos materiais, o mesmo não se pode dizer da obra cinematográfica. A partir desse olhar pouco inventivo sobre um personagem interessante pelas suas contradições, o longa-metragem torna-se cansativo. A montagem, que poderia adquirir ritmo, faz-se quase uma máquina de reduzir temporalidade para criar dois cortes – um para o cinema e outro para o streaming – em um suposto "corte do diretor", que mais soa como um exercício de ego napoleônico que, de fato, opção estética.



O mesmo ponto pode ser levantado sobre a fotografia do filme, que opta pela paleta mais cinzenta, o que, mais uma vez, contrasta com a ideia de pompa que o realizador tenta apontar - e o uso de "tentar" deve ser sublinhado, visto que o filme mais soa como uma tentativa que de fato uma realização. Ora, se Ridley Scott desejou registrar que o momento da auto-coroação foi pintado, por que não se utilizar da mesma ideia pictórica para indicar caminhos de excessos e comedimentos na vida de seu protagonista? Se o auge de sua trajetória é o momento retratado por David e o declínio se formaliza no exílio na Ilha de Santa Helena, por que não contrastá-los de forma imagética e através da composição? Ao tentar tornar tudo "real" e quase uma recriação documental, Scott e Dariusz Wolski, o diretor de fotografia, acabam polindo e tirando da imagem qualquer vestígio de força. O filme, então, conclui-se da mesma forma que se iniciou: pálido, burocrático e sem qualquer perspectiva de entendimento da figura central e, consequentemente, da arte cinematográfica como narração de imagens.

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