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"Assassinos da Lua da Flores" ou A Crença na Imagem

Foto do escritor: MontezMontez

I

Uma lança se ergue ao céu, enquanto a voz de um nativo-americano, em língua própria, expressa sua cultura. Um corte nos leva para o olhar de uma garota que observa o ritual de fora, com encantamento. Ela deve ter por volta dos dez anos e, claro, não imaginava que dali a alguns momentos sua vida iria mudar completamente. Mas, antes de chegarmos a essa parte, observemos como Martin Scorsese opta por enquadrar esse olhar infantil: em um close-up frontal. Tal escolha formal se revela como componente essencial para entender seu papel como cineasta em Assassinos da Lua das Flores. Ele poderia optar por um plano por sobre o ombro da garota, para indicar que estávamos observando o olhar dela sobre o ritual, mas não. Ao enquadrar de frente, ele se posiciona como narrador e, consequentemente, deixa claro que acompanharemos os fatos das próximas mais de três horas sob o olhar dele, um homem branco. Contudo, o close-up se mostra ainda mais assertivo: é o olhar dele, claro, mas um olhar próximo ao olhar indígena justamente por manter o respeito com a cultura dos povos originários. 


Esse é o primeiro ponto que merece destaque no longa-metragem. O vasto orçamento possibilita a Scorsese e toda a sua equipe reconstruírem de forma detalhista o modo de vida dos Osages durante a década de 1920, com cada objeto, cada vestimenta, cada ritual, sendo seguido à risca, com respeito histórico. Por isso, não é impossível dizer que o filme traz consigo, nesse aspecto, um apuro jornalístico e documental, algo que o livro de David Grann carrega, e que Scorsese e Eric Roth poderiam ter optado como formato narrativo do longa, mas eles escolhem por trazer como ponto de vista a ação de Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) e Bill Hale (Robert De Niro). Ao fazer isso, ele retira do centro a investigação – ainda que haja uma – para os acontecimentos em si, para a barbárie criminosa praticada por esses personagens com a nação Osage. Mas voltemos para a sequência inicial que abriu esse texto: após o ritual, acompanhamos um plano aberto do vasto domínio do povo originário. Ali, descobre-se o petróleo e, em um momento muito bonito, observamos em câmera lenta os Osage banhando-se, em alegria.



Essa contemplação, de alguns segundos, é interrompida por uma montagem tal qual um reels de notícias do cinema mudo, onde informam-se os acontecimentos posteriores àquela descoberta e anuncia-se a chegada dos homens brancos à região. A sequência inicial finaliza com a entrada de Ernest em um trem, em um lento travelling para o rosto dele: alguém insipiente, ambicioso e que mudará a trajetória de vida de Mollie (Lily Gladstone) e sua família. Scorsese em momento algum transforma esses personagens em heróis – eles são exatamente o que demonstram ser, vis. O diálogo entre Ernest e Bill, ainda no início, ilustra tal noção. Ainda mais quando Thelma Schoonmaker corta, de forma violenta (um dos cortes secos mais brutais do filme) para um indígena morrendo, logo após o espectador ter ouvido que aquele era o mais belo povo da região. Tal opção assina o olhar crítico de Scorsese para aqueles crimes horrendos ali cometidos. Então quando, mais à frente, é questionado se "você consegue achar um lobo nessa imagem?", a frase mostra-se tanto como noção do público sobre o que está acontecendo, como também os coloca como testemunhas do crime que ocorreu e que foi sendo apagado e esquecido ao longo dos anos.



II

Durante a publicidade do filme, uma fotografia se destacou: os personagens de DiCaprio e Lily Gladstone sentados. Ele olhando para frente, e ela olhando para ele, com um leve sorriso. Surgiram, desde então, diversos memes, sendo o principal deles aquele em que se comenta que Assassino da Lua das Flores seria um filme de 3h30 apenas dessa cena. Chega a ser interessante como tal afirmação tem um fundo de verdade quanto se assiste ao projeto. Explicarei o porquê disso nos próximos parágrafos. Mas, antes, façamos uma contextualização do que esse momento representa no longa-metragem e a situação de ambos naquele instante. Comecemos por Ernest, sobrinho do personagem de De Niro e que tomou como função casar-se com Mollie. Ele, aos poucos, foi ganhando a confiança de Gladstone, até ela permitir que ele entre em sua casa e um jantar ao seu lado. É esse momento que a fotografia de divulgação capta. Gladstone, por sua vez, está sentada à mesa com um alguém que ela sabe ter interesse em seu dinheiro, e seu desejo ali é saber se há algo mais que a mera ambição do homem branco.


Isto posto, Scorsese decupa a cena com muito cuidado. Primeiramente, Mollie está sentada na cabeceira da mesa, enquanto Ernest está sentado na lateral, alimentando-se. A simbologia dessas posições é ressaltada pela opção entre primeiros planos e close-ups, gerando, de forma lenta, a aproximação entre ambos através do diálogo: ela falando em sua língua, e ele, imbuído de algum conhecimento, demonstrando que havia entendido, gerando em Gladstone um misto de surpresa e confirmação de que Burkhart está empenhado em conseguir o que deseja. O diálogo é interrompido, mais a frente, com a chegada de uma tempestade. Ernest corre para fechar a janela, sendo rapidamente impedido pela mulher, que diz que tal momento é importante para ficar em silêncio. Aqui cabe um parênteses: a forma que Scorsese utiliza o silêncio em seus filmes é sempre marcante, mas aqui ele eleva mais um degrau, ao trabalhar com esses momentos durante o filme para fortalecer a mensagem. Mas voltemos à cena: Mollie foi buscar uma manta e, ao retornar, opta por não sentar na cabeceira onde estava, mas ao lado de Ernest. Ele insiste em falar (claro, precisa preencher o espaço com sua voz), mas ela o interrompe: o momento é de silêncio.


Logo, você pergunta o porquê daquela afirmação do início dessa seção ser verdadeira: está posto neste momento a relação que vai guiar centralmente o longa-metragem, com Mollie constantemente observando Ernest, e ele, ignorante, tentando obedecer Bill Hale. Gladstone olha para DiCaprio não como alguém simplesmente apaixonada, mas consciente de que o interesse vai além do amoroso. A tempestade, que permite o silêncio, é o prenúncio da natureza para o que vai se desenrolar. Enquanto perde suas forças ao longo do filme, Mollie não deixa de olhar para seu marido, para o que ele faz, e, quando sua doença está prestes a se tornar debilitante, ela confessa que tem medo daquele que dorme ao seu lado. Aquele vislumbre lateral para o homem que olha para a frente confirma-se como sendo o de alguém perceptiva, nunca posta por Scorsese de forma patriarcalista. Mollie – e Gladstone – entendem o quanto um olhar pode falar mais que as palavras ditas. E a atriz, por sua vez, faz isso de forma brilhante. Sua boca diz algo, mas seus olhos dizem outra coisa.



III

O banho do petróleo e a tempestade se encontram, de certa forma, naquela que considero ser uma das mais belas cenas da cinematografia de Scorsese. Bill Hale, na avidez por dinheiro, queima seu terreno, a fim de garantir trinta mil dólares de seguro. Enquanto o campo se enche de chamas, os investigadores do FBI observam tudo de longe: eles já sabem que é ele quem está provocando as mortes dos Osage ao longo do tempo. Ao mesmo tempo, dentro de um quarto, Mollie está paralisada na cama, após injeções de insulina adulteradas, enquanto Ernest se embebeda. Aquele banho de petróleo agora chega ao ápice: as chamas. Se ali era de alegria, naquele instante é a constatação da chegada ao clímax – sob aquelas chamas, diversos corpos, um deles ainda agonizando em uma cama diante do o olhar de um de seus assassinos. As janelas, antes abertas para o silêncio, estão fechadas e abafam o ambiente. Rodrigo Prieto, como diretor de fotografia, entende que aquele instante é mais que um momento da narrativa: é a culminância de todos os acontecimentos do longa-metragem.


Por isso, aquelas chamas que surgem na janela soam quase artificiais, provocadas por iluminação. O fogo que queima ali representa mais que um desenrolar narrativo, representa um sentimento. É o petróleo que gera dinheiro e que, por causa dele, aqueles homens estavam dispostos a cometer diversas atrocidades. O lobo na imagem se torna evidente, inquestionável. Bill Hale, o mandante dos crimes, como bem definiu Grann em seu livro, era um homem que "trabalhava febrilmente como alguém que temia não só a fome mas o Deus do Antigo Testamento que, a qualquer momento, poderia castigá-lo como fez com Jó". E o que acontece, a partir daquele momento, é uma sucessão de breves e falsos avanços históricos, visto que, apesar da punição surgir tanto para Ernest quanto para Bill, ela se torna esquecível perante a história. O que Scorsese faz no filme é trazer para a luz esses crimes de forma pungente e respeitosa. E isso fica claro na sequência final (caso você não tenha assistido ao filme ainda, recomendo que pare aqui sua leitura e volte para este último parágrafo após o visionamento).



Da sala privada do tribunal, solitário, Ernest é deixado por Mollie. Um corte bruto, mais um da montagem precisa de Schoonmaker, nos leva para o estúdio de uma rádio. Ali, uma espécie de rádio-novela se desenrola perante nossos olhos e ouvidos. Os narradores, como fica evidente, cuidam do assunto com um tom de espetáculo, como se fosse mais uma história de tragédia para entreter um público ávido por true crimes – modalidade que já tinha força, mas que nos últimos anos se tornou uma fonte certeira de dinheiro para a indústria do entretenimento. Contudo, se a brutalidade do corte junto ao tom farsesco assusta num primeiro momento, logo a câmera corta para o microfone, e vem um breve silêncio. Surge em cena o próprio Scorsese, lendo, com pesar e sem qualquer afetação, o destino de Mollie, e como, após sua morte, os assassinatos não foram mencionados, restando o apagamento. Entretanto, a história foi contada novamente, o coração da nação Osage ainda pulsa forte, como é ilustrado pela belíssima sequência final. Assassinos da Lua das Flores é mais uma obra-prima de Martin Scorsese, lidando com delicadeza e pulso firme sobre uma cicatriz da história estadunidense que não deve ser esquecida. Quando sobem os créditos, a encenação finaliza, mas o som dos Osage ainda ecoa forte.

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