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Janela de Cinema 2023 | As faíscas melodramáticas de "Folhas de Outono"

Foto do escritor: MontezMontez


Diversos teóricos já nomearam ou discutiram alguma palavra que, a eles, resumia características do cinema que poderiam ser encontradas em uma narrativa ou em um plano. Edgar Morin, por exemplo, para ficar com um dos mais sentimentais quando escrevia sobre cinema, falava sobre "alma", uma palavra que, por mais que tenha em seu cerne o imaterial, consegue engendrar perfeitamente esse algo que sentimos de alguma forma, ainda que esteja na abstração. Enquanto a projeção de Folhas de Outono ocorria, era essa palavra que vinha à mente. Em meio aos característicos planos estáticos dos filmes de Aki Kaurismäki e o tom de voz monocórdico de seus personagens, existia entre eles algo muito potencializador que, naquele instante, me lembrava a alma, mas quando o filme insere seus créditos ao final, uma outra palavra tomou conta do pensamento: faísca. Então, caso fosse definir cinema em uma palavra — com certeza faísca seria essa. E, como exemplo dessa tal taxonomia, este filme.


As cores dos espaços ou uma noite no karaokê não escondem a melancolia e a dureza do mundo e da vivência da classe operária. Tanto para Ansa (Alma Pöysti) quanto para Holappa (Jussi Vatanen) suas vidas estão resumidas em circular entre empregos que lhes pagam mal e lhes são exaustivos, como meros fantoches do capital, entrando numa circularidade, num ouroboros da exploração. Kaurismäki, por sua vez, leva seu olhar para como essa máquina funciona, satirizando-a, colocando-a como provocadora das desigualdades e da miséria. E, também por isso, o cineasta, entendendo que tal discurso já é evidente seja através das ações mecânicas ou do que se escuta pelo rádio, transpõe seu discurso para aquilo que pode surgir em meio a tudo isso, justamente a faísca. O primeiro olhar trocado entre Ansa e Holappa é daqueles sinuosos, de encontro e desencontro, mas cuja música e os planos fechados intensificam a ligação. Ora, com tais características, Folhas de Outono é um melodrama.



Se nos clássicos melodramáticos, os sentimentos eram intensificados através da música e do plano, aqui, nesse mundo de velocidades e de sentimentos quase incomunicáveis, a linguagem cinematográfica faz isso. Então, quando Ansa ou Holappa pensam um no outro, é a letra da música que permite que os caminhos se estreitem. O amor, esse sentimento que é base de todas as obras artísticas, é a faísca que torna os dias intensos e melancólicos em algo mais humano. E Kaurismäki o vê de forma pura, singela, pequena. É como se ele entendesse o amor no mesmo ritmo dos acordes de uma bossa nova. O que Ansa e Holappa têm a oferecer um ao outro são as tais coisas lindas que Tom Jobim descreveu em Wave. E um dos momentos mais bonitos do longa-metragem - que, por sua vez, é recheado disso - é quando os dois protagonistas estão na frente do cinema, após terem assistido a Os Mortos Não Morrem, de Jim Jarmusch.


Ele e ela, como numa composição característica do cineasta, levemente distanciados, diante de diversos cartazes de cinema. Mas um desses cartazes chama atenção: o de Desencanto, de David Lean. Neste filme, um toque de mão no ombro permite que todo um sentimento venha a tona, que as vidas normais de um homem e uma mulher se tornem mais que ordinárias: eles se permitiram um contato raro, um amor que mesmo não sendo o de um final feliz, os marcou profundamente. Ansa e Holappa compartilham desse mesmo sentimento. O filme, de certa forma, se torna um discurso em torno das pequenas coisas em meio a megalomania financeira. E vai no sentido contrário, como consequência, a esse cinema que, muitas vezes, se esteriliza em sua forma e discurso, acreditando estar falando sobre sentimentos, mas na verdade retirando-os em nome de uma rentabilidade financeira. Kaurismäki permite que o mundo seja pintado por sentimentos.



E, com suas veias melodramáticas, Folhas de Outono não deixa de mencionar em sua estrutura um dos maiores representantes do gênero: Tudo o que o Céu Permite, de Douglas Sirk. E não me refiro especificamente ao trecho final, mas principalmente a um plano de Ansa na janela, olhando para fora, esperando seu amor. Seu rosto está, como característica das atuações comandas pelo cineasta, sóbrio. Mas é a chuva que cai intensamente e molha a janela que transmite exatamente o que a alma diz. E não haveria outra palavra para usar aqui: alma. Sim, Folhas de Outono é um filme de faíscas - sejam elas por causa da história de amor dos personagens ou pela forma com a qual Aki Kaurismäki monta seus planos - mas, principalmente, é um filme que vê e permite que uma alma humana encontre outra e, a partir desse contato, surja algo mais forte que pedaços de concreto. Em meio a construções de importância, a que lhe mais é cara é o amor.


Esta crítica faz parte da cobertura do XIV Janela Internacional de Cinema de Recife.

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