
Uma porta se abre, produzindo um feixe de luz na superfície desfocada, a figura de Eurico Cruz (Emilio de Mello) toma forma à medida que se aproxima, bígamo de duas mulheres que, além de possuírem o mesmo signo e serem viúvas, têm o mesmo nome, separadas apenas por uma consoante. Ana (Simone Spoladore) e Anna (Christina Ubach) são loiras, brancas e, para variar, esbeltas, representações de um tempo e uma classe. Retornado de viagem, Eurico é tomado pela indubitável certeza de que corre perigo: uma de suas mulheres quer matá-lo, embora não saiba exatamente qual — o que o deixa muito irritado.
À primeira vista, Aos pedaços (2020) parece trivial, uma narrativa que se desenrola a partir da desconfiança e do pressentimento negativo que guarda o personagem principal, facilmente esquecível entre a profusão de filmes brasileiros lançados no final da década passada e início desta. Contudo, o filme não consegue passar despercebido, anunciando uma mescla baseada na tradição e experimentação da linguagem cinematográfica. Como o próprio nome indica, o penúltimo longa de Ruy Guerra aposta na fragmentação e interseção das abordagens, ora prezando pelas composições chiaroscuro que delineiam as formas visíveis, ora pela agilidade em transpor movimentações que reorganizam constantemente o enquadramento. São condutas, em suma, contrárias, visto que a primeira é geralmente associada à paciência e a segunda à celeridade, colocando a produção em determinado nicho “experimental”, notável para um cineasta nonagenário. Na verdade, é compreensível que esses gestos surjam de uma figura como Guerra, pois o filme só poderia ser feito pelos que experienciaram o primeiro século cinematográfico, quando havia certa busca pelo risco e o desejo pela irreverência.

Embora ligeiramente associado a técnicas teatrais, como a entonação dos agentes em cena ou quando monólogos se estendem, o filme não pode ser reduzido a tais procedimentos. Na prática, o que Guerra produz é um imbricamento pertinente entre forma e conteúdo, posicionando a câmera enquanto agente que permite entrever os estados do tormento de Eurico, um homem que possui demasiados fantasmas e agora é assombrado pela dúvida, algo que parece nunca ter tido durante a vida. Não é à toa que escolheu a dedo as esposas, os domicílios entre a praia e o deserto, idênticos pelo conteúdo que envolvem. Contudo, a confusão vivida pelo personagem deturpa a ordem estabelecida, extravasando para o registro e modulação da imagem, efetuando sucessivos recortes pouco preocupados com representações universais, mas que possam, ao contrário, expressar as volições e os anseios daquele que se deteriora diante dos que observam.
Não há país, tampouco delimitação temporal, apenas o trânsito de corpos sobre paisagens herméticas e deliberadamente pensadas através de um jogo entre luz e sombra, preto e branco. Além disso, a trama se beneficia da dúvida para produzir circularidades, reproduzindo determinados planos, reciclando vislumbres de compreensão do labirinto que se fecha a cada corte. Afinal, trata-se de um cenário preocupado com a confluência dos sentimentos, visando, para além das respostas rotineiras que um thriller psicológico pode oferecer, reverter sentidos por vezes suprimidos em narrativas orgânicas, rompendo criativamente destinos fixos na busca por disrupções e tensionamentos. Com efeito, todas as relações são distribuídas nesse jogo, seja entre as esposas ou nas confissões ao pastor (Julio Adrião) que esbraveja versículos bíblicos sobre Eurico, uma tentativa falha de dar sentido ao que vive.
Quem irá matá-lo? Quem é Ana e quem é Anna? No fim, pouco importa, nem mesmo Eurico sabe. Ao contrário, importa o contato das fenecidas figuras luminosas com os fantasmas que repousam nas sombras, depositários das intimidades que cerceiam cada indivíduo. Nada mais do que um embate reflexivo, uma discussão travada entre duplos e espelhos, que desaprovam ou impugnam o comportamento daquele que os projeta. E, tal como um esquema concedido apenas ao destino, o filme acaba subitamente, sem grandes rodeios ou soluções, restando a propagação irresoluta que coloca decisões e afetos em cheque, solicitando respeito às imagens que surgem e desvanecem na mesma intensidade.
תגובות