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"Angels In America": Mais Desejo, Mais Vida

Foto do escritor: Felipe DuarteFelipe Duarte

Em 1987, a escritora estadunidense Fran Lebowitz publicou um curto texto na revista Interview, intitulado The Impacts of AIDS On The Artistic Community. O texto consiste de 12 anedotas, nas quais ilustra episódios absurdos que ocorreram em sua vida quando a morte dos artistas que conhecia se tornou um evento recorrente. Em uma passagem, descreve um telefonema com um colega, que pede a ela que, se chegar antes dele a um velório, guarde espaço para que ele consiga sentar-se “no lugar de sempre”. Ela quase nunca identifica os personagens por nome, sejam eles vivos ou mortos, mas menciona suas idades e profissões: o arquiteto de 27 anos, o fotógrafo de 31, o diretor de arte de 38 etc.


Lebowitz construiu uma persona pública e artística intrinsecamente associada à cidade de Nova York e à efervescência cultural ali existente durante a década de 80. Inevitavelmente, a morte dessas várias figuras culturais importantes se traduziu para ela como a perda de amigos íntimos. Em sua vasta maioria, homens gays ou que se interessassem em alguma prática homoerótica. Décadas depois, a escritora comentou, também para a Interview, que mensurar os impactos da AIDS na cultura estadunidense consistia em tentar entender o que permanece dessa cultura sem a presença e participação de homens gays. E não só como artistas.


Em 2011, no documentário Public Speaking (dirigido por Martin Scorsese), Lebowitz focou no outro grande grupo do fazer cultural: as audiências:

Uma audiência com um alto nível de conhecimento é tão importante para a cultura quanto os artistas, é exatamente tão importante quanto. [...] Quando aquela audiência morreu - e ela morreu em 5 minutos, pessoas não morriam mais rápido em uma guerra - permitiu, claro, que a 2ª, 3ª, 4ª classe (de artistas) tomassem a frente. Porque, claro, as primeiras pessoas que morreram de AIDS eram as pessoas que - e eu não sei como dizer isso… transavam muito.

Essa associação entre uma libido estereotipada do homem gay e o seu conhecimento cultural pode parecer ofensivamente jocosa ou simplesmente sem fundamento. No entanto, considerando e realocando alguns fundamentos de Mulvey em Prazer Visual e Cinema Narrativo [1], um elo entre os dois temas se manifesta, que conecta obra e público não de acordo com a frequência sexual do último, mas proporcional à liberdade no ato de desejar. Ora, se não só a sétima arte mas também outros meios narrativos e sensoriais apelam para o prazer voyeurístico de seus simulacros e miméticas, não seriam aqueles indivíduos que mais reclamam seu prazer (e suas complexidades) mais capacitados para confrontar esses trabalhos? Não é, afinal, o clímax de transcendência que os espectadores buscam, quando a dança, a pintura, o cinema, a música ou seja lá o que for os seduzem e os desarmam? Não é a arte também uma questão de desejo?


Consequentemente, a AIDS marcou não só a história da comunidade LGBTQ+, mas também a cultura do mundo ocidental, dando munição ao argumento que acusou o hedonismo do pós Segunda Guerra não só de moralmente repreensível, mas sanitariamente perigoso. Em paralelo, o estigma que surgiu da associação da doença com pessoas queer a transformou em um tópico de menor relevância para o poder público e a sociedade civil (Reagan demorou quatro anos, desde os primeiros registros, para mencionar sua existência publicamente). Assim, muitos foram os esforços de criativos e intelectuais como Lebowitz para não só registrar a epidemia, mas também tentar dimensionar os múltiplos desdobramentos culturais, políticos e até espirituais, a partir da ameaça que recaiu sobre uma comunidade já marginalizada. Em 1991, um outro autor fez público seu texto com essa exata intenção, que veio a se tornar um dos maiores trabalhos da História do teatro mundial.


Angels In America: A Gay Fantasia On National Themes foi escrito por Tony Kushner, um judeu gay nascido na ilha de Manhattan. O extenso escrito original  foi dividido em duas montagens, Millenium Approaches e Perestroika, que, juntas, compõem a totalidade do enredo. A saber, Angels trata de um grupo de personagens novaiorquinos que veem suas vidas pessoais atravessadas pelas convulsões culturais da década de 80 e pela crise da AIDS. Dois desses personagens vivem com a doença, mas existem em polos opostos do espectro da influência social: Roy Cohn (inspirado em uma figura histórica homônima) é um advogado republicano verborrágico, que se vangloria de impor a pena capital a espiões soviéticos. Ele lida com seu quadro de AIDS ofendendo o enfermeiro gay, Belize, por esporte, e chantageando figurões do Estado de sua cama de hospital para acessar medicamentos em fases de teste, através de um telefone posto ao lado de um retrato no qual aperta a mão do Presidente Ronald Reagan.


No outro polo, Prior Walter, ex drag queen e melhor amigo de Belize, que vê seu namorado, Louis, o abandonar quando as primeiras lesões tópicas começam a marcar seu corpo. Louis se envolve com um protegido de Cohn, Joe Pitt, um mormón ingênuo que digladia internamente com sua homossexualidade para tentar salvar seu casamento com Harper, uma jovem dona de casa sexualmente frustrada e viciada em ansiolíticos.


Isolado em seu apartamento, imerso em dores físicas e amarguras emocionais, Prior acredita estar ficando louco, tendo visões de fantasmas e escutando sons misteriosos. Um evento extraordinário, no entanto, esclarece que o personagem não está perdendo a sanidade. Durante uma noite solitária, o teto de seu apartamento explode, e por ele entra uma mulher alada, se nomeando um mensageiro celestial. Este anjo é o Principado Continental da América, que desceu dos Céus para anunciar Prior Walter como profeta, e incubi-lo de realizar uma tal Grande Obra: Deus sumiu, e cabe a este homossexual enfermo paralisar o progresso da Humanidade, motivo apontado pelos anjos para o afastamento do Criador do Universo.



A mistura de comentário social ácido com eventos mágicos para ilustrar uma crise ainda em curso com personagens tão específicos fez grande sucesso na Broadway, e causou óbvia polêmica com setores mais conservadores, consternados pela associação do imaginário sacrossanto cristão com a suposta corrupção moral de um personagem gay soropositivo. Inevitavelmente, gerou-se demanda para uma versão audiovisual.


O próprio Kushner adaptou Angels In America ao formato de minissérie, entregando o roteiro a Mike Nichols, uma das grandes figuras a coexistir entre o teatro e o cinema americano. O projeto foi ao ar em 6 episódios no ano de 2003, com um elenco estelar que inclui Al Pacino como Roy Cohn e Meryl Streep em quatro papéis diferentes, se tornando um grande vitorioso nos prêmios Emmy e ajudando a solidificar o papel da HBO como grife de televisão premium.


Um dos grandes motivos para o êxito tremendo da minissérie é o tom com o qual Nichols estabelece a diegese do trabalho. Ainda que, quando comparada ao teatro, a narrativa audiovisual sempre pareça buscar uma verossimilhança maior em sua forma, o diretor manteve uma veia teatral pulsando e sangrando ao centro de sua adaptação. É ela que acolhe a característica comum entre todos os personagens, que, de alguma forma, buscam algum senso de grandeza para superar suas tragédias mundanas. Prior reage a tudo de maneira performática e auto-irônica; Louis e Cohn, cada um à sua maneira, abusam de seus monólogos, que beiram ao fluxos de consciência, para controlar os ambientes que se inserem; Harper alucina com remédios e interage com amigos imaginários, tão dopada como quando conversa com o próprio marido. Todos assolados por algo, todos fabricando alguma transcendência de suas chagas. O estilo teatral regido por Nichols ali está para acusar esse denominador comum aos personagens, tão distintos entre si, até o final de Millenium Approaches, primeira metade do enredo. E, então, manifesta-se o anjo.



Nesse ponto, a abordagem tonal da série encontra uma nova camada de propósito, mais específico e que sintetiza o intuito político de Kushner através da teatralidade de Nichols. Quando chegamos ao fim Millenium, já acompanhamos Prior Walter há tempo suficiente para notar que seu intérprete (o ator Justin Kirk) parece incorporar ainda mais do teor teatral da obra em sua performance, com um timing cômico constante e um rosto maravilhosamente expressivo. O contraste se acentua quando comparadas as performances de Kirk e Jeffrey Wright, no papel de Belize. O enfermeiro é também um homem afeminado, e Wright faz um trabalho excelente com seus maneirismos marcantes, ao mesmo tempo que mantém um caráter impávido e ácido constante no personagem que, diferentemente de Prior Walter, se faz comunicar com uma face de pequenas expressões.


Mas essa abordagem particular de Kirk não desqualifica seu desempenho no papel de Prior. O personagem é, afinal, uma intersecção entre um protagonista trágico e um alívio cômico, e o destaque causado pela discrepância tonal é orgânico ao propósito do texto. Prior é sem paralelo em sua expressividade, até que o Principado o visite. O profeta enfermo se assusta, agarrando a cama durante os tremores que precedem a entrada do ser celestial e congelando sua expressão em uma mandíbula semi-deslocada com pavor. O anjo mensageiro, por sua vez, é uma Emma Thompson shakespeariana, que declama absolutamente tudo que diz, com olhos esbugalhados. Ela balança no ar sob a luz dourada, movendo seus braços com os cabelos loiros permanentemente soprando junto a um vento inexplicável, esbravejando a vontade do Paraíso e gozando dramaticamente numa “rapidinha” flamejante com Walter.


Quando Prior e o Principado se encontram, o estilo teatral de Angels é catalisado para que a audiência vislumbre o intento final do produto: o enredo do homossexual-com-AIDS-consagrado-profeta se concretiza na minissérie de forma teatral não só em referência à origem do texto, mas porque o estilo casa a afetação queer e o épico bíblico em gestos indissociáveis. Se todos os personagens humanos buscam transcender suas misérias de alguma forma, é o Principado das Américas que se manifesta como a transcendência personificada, e ele escolhe somente Prior, incorporado por um Kirk sem temor ao ridículo, para realizar a Grande Obra, em nome dos Céus.


A união da má-fortuna secular e do privilégio sacro cristão em Prior Walter existe não só para questionar quaisquer que sejam as morais das instituições religiosas que se insultaram com a criação de um personagem com HIV que faz sexo com um anjo, mas para que Kushner, em um gesto não só crítico, mas propositivo, sacralize a vida da população gay que foi assolada por uma doença horrorosa e relegada às margens da sociedade para sofrer. Nichols entende isso e imortaliza em imagem, utilizando do estilo teatral para estruturar uma evolução a partir dos encontros de Walter com o divino.


A segunda interação entre o anjo e o homem acontece no último episódio da série. Ao encerrar da Perestroika, Prior entra em embate físico com o Principado buscando negar o papel de profeta que lhe foi atribuído. Persistente, ele derrota o mensageiro e ganha acesso ao Reino dos Céus (uma mistura de ruína romana com São Francisco), onde encontra o Conselho dos Principados Continentais, um grupo de anjos que gerencia o firmamento, na ausência de Deus. Diferente da aparição do principado original, os Principados surgem como um grupo de burocratas com roupas de inverno, reunidos ao redor de uma mesa atolada de papeis. Sussurram entre si e, em vozes calmas e preocupadas, atendem o profeta rebelde.


Prior Walter também está calmo, e comunica de maneira direta sua demanda por uma bênção celestial, que cure todos da AIDS, e sua negação à Grande Obra. A missão de parar o progresso humano, para Prior, contraria a definição da nossa natureza. Mesmo querer estagnação ainda é almejar alcançá-la. O Conselho, por sua vez, aceita a renúncia do profeta, mas diz não saber como curá-lo, nem a ninguém, e sugere que ele não retorne à Terra, onde a vida mortal só sofrerá cada vez mais.



Nivelado ao Principado Americano pelo tom hiperbólico do primeiro encontro, o humano agora se comunica com o conclave angelical sem parecer temer a hierarquia cósmica que ocupam, e insiste. Ao invés de exigir a cura impossível, então, Prior Walter pede a possibilidade de retornar à Terra e viver, mesmo sem garantia de conforto ou longevidade. Avisado sobre a falta de esperança mais uma vez, contesta que sua escolha é sobre o direito de buscar esperança. Sobre o desejo de encontrá-la. A vida de Prior Walter, tanto como a arte de Fran Lebowitz, é um ato de desejo.


Dessa forma, sob a égide dos princípios apontados pela escritora desde os anos 80, a adaptação de Angels In America ganha da estética de Nichols e do texto de Kushner a potência de sintetizar sobre um dos pilares da natureza humana. Extrapola as cargas políticas de seu tempo histórico, mas não as minimiza. Ao contrário, centraliza a experiência desses sujeitos marginalizados e se satisfaz com eles como amostragem da Humanidade.


Em 2024, a adaptação parece ainda iluminar um caminho possível para as questões merecidamente morais e escassamente estéticas que permeiam a ficção audiovisual contemporânea, desde a forma correta a abordar os princípios políticos até a centralidade do desejo como tema (e a permissão de ser criativo em suas representações). Infeliz e ironicamente, a minissérie sairá do catálogo da plataforma de streaming Max ao fim de Junho, o mês do orgulho.


Angels In America se tornou uma das obras mais bem sucedidas da televisão americana, e reitera seu prestígio há duas décadas. Sua qualidade notória de tecer uma abordagem estética que serve aos temas sem precisar sacrificar-se para fazê-lo garantirá ainda mais décadas de longevidade. Àqueles que se identificam com os personagens e suas questões, é de fato um motivo de orgulho perceber a maestria da obra que emergiu e ecoou a não só a partir das perdas da AIDS, mas também da compreensão que haveria ainda um futuro, e algo a dizer sobre aquilo e aqueles que passaram, não só para as pessoas queer que depois viessem, mas para todos os outros.


Para nós, que viemos muito depois do tempo da negação de Prior Walter, ele direciona seu monólogo, na Fonte de Bethesda. Olhando para a câmera, no inverno do Central Park, comenta as estações a que assistiu passarem, e o desejo de permanecer para o próximo verão, ver a fonte descongelada mais uma vez. E profetiza:


“Esta doença será o fim de muitos de nós, mas não de todos. E nós seguiremos em frente com os vivos, e nós não vamos desaparecer. [...] O mundo só se move para a frente. Nós seremos cidadãos. Adeus. Vocês são fabulosos, cada um de vocês, e eu os abençoo. Mais vida. A Grande Obra principia.


 

Nota


[1] Laura Mulvey é autora do ensaio "Prazer Visual e Cinema Narrativo", publicado em 1973. Leitura basilar para a crítica cinematográfica feminista contemporânea, o texto cunhou o conceito de male gaze (olhar masculino) e popularizou a noção de que o cinema clássico é consumido por gerar um prazer fetichista e voyeurístico.

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