Afinal, o que ela (não) pode fazer?
- Lwidge de Oliveira
- 4 de abr.
- 4 min de leitura

Atreladas ao local e tempo em que foram produzidas, as imagens postadas nas redes sociais integram um cenário baseado na contextualização algorítmica, cuja previsibilidade e manutenção do arquivo digital atendem a ciclos uniformes de comunicação. Uma vez vinculado ao sistema, o usuário é submetido a ações rotineiras que constituem processos de pilhagem, rastreáveis à medida que os dados se cruzam com reações a níveis políticos, artísticos e sociais. Em suma, é inevitável que a proliferação imagética esteja alinhada a processos de compartilhamento e vigilância, definindo estratégias que monopolizam o olhar e os afetos, o desejo e as performances.
A exemplo do cenário destacado, na última semana as redes sociais foram invadidas por imagens geradas pelo ChatGPT, cuja última atualização permite aos usuários alterar registros fotográficos a partir dos traços estilísticos do Studio Ghibli, produtora por trás de animações como A viagem de Chihiro (2001, dir. Hayao Miyazaki) e O conto da princesa Kaguya (2013, dir. Isao Takahata). Comemorada por Sam Altman, CEO da OpenAI e dona do chatbot, a tendência rendeu mais de 1 milhão de usuários em apenas uma hora na tarde da segunda-feira (31), atingindo um grau de penetração imagética alarmante. Não havia necessidade de passar minutos a fio nas redes, bastava acessá-las para que essas imagens repousassem sobre as telas e sobre os mais diversos espectros. Desde figuras políticas até os anônimos, o artifício fora utilizado para reproduzir as mais diversas situações, rapidamente designando discussões entre designers e artistas independentes, preocupados acerca das consequências nocivas da apropriação de um estilo artístico pela inteligência artificial.
Em síntese, as imagens compartilhadas caracterizam a estagnação da heterogeneidade em cenários digitais. Conformada à ignóbil premissa de entrelaçar usuários, a trend reafirma a vacuidade do tecido social que abraça, sem ressalvas, tecnologias que carecem de regulamentação. Visto a partir da experiência comunicacional, trata-se de uma obstrução da potencialidade de ferramentas que poderiam revelar observações do mundo, mas que constituem pontos negativos e deficitários de uma experiência cognitiva. É através desse caótico cenário que oscilações perigosas predominam, destacando a emergência reflexiva sobre os procedimentos de criatividade e alteridade.
Incomparáveis pela visão sensível acerca da relação entre humano e não-humano, natureza e urbanidade, os filmes do Studio Ghibli delimitaram parâmetros da indústria de animação. Ainda hoje, destacam-se pela utilização de métodos de animação tradicional, feitas à mão e quadro a quadro, com divisões específicas para elaboração de personagens e cenários. Certamente em conflito com tais princípios, essas reproduções por inteligência artificial estampam uma antítese à valorização do processo técnico e temático, apropriando-se sem consentimento do trabalho de animadores que desenvolvem seus traços há mais de 40 anos. O que pode parecer inofensivo e divertido, na verdade, reforça o agravamento da experiência baseada em imagens vazias, reproduzíveis a quintessência a partir de um sistema binário-linear, operável através da extração e análise de dados que cerceiam as preferências e ações dos usuários, vistos como moeda de troca por empresas tecnológicas sem ao menos se darem conta.
Na esteira da discussão instalada, veículos de comunicação retomaram um trecho do documentário Never-ending man (2016, dir. Kaku Arakawa), onde Hayao Miyazaki, cofundador do Studio Ghibli, reprova o resultado de um experimento com IA que concebe a animação de personagens. Na cena, composta de maneira simbólica entre jovens animadores e Miyazaki, discutem-se os objetivos e a premissa do experimento, cuja sentença final, proferida pelos entusiastas, é o aprimoramento de uma tecnologia que desenha como os humanos. Embora o foco esteja na reação de Miyazaki, é nobre como a cena é construída conjuntamente à figura do último, seguindo ao seu lado frente aos jovens posados com uma lousa escrito “deep learning”, confiantes que trazem boas notícias. Seguida por silêncio e ligeiro close nos olhos do mestre da animação japonesa, a cena se encerra para dar lugar ao plano de Miyazaki trabalhando, como o faz desde a década de 1960, com folhas de papel, lápis e mesa de luz, limitando-se a dizer que a humanidade está perdida.
Passada quase uma década do documentário de Arakawa, a cena reverbera as consequências da capitalização das imagens e o uso indevido no universo corporativo e digitalizado. Por demais precipitado, os desenvolvedores do segmento da inteligência artificial opõem a realidade e o imaginário, caracterizando uma normalidade que corrompe temporal e sensorialmente a experiência cotidiana, a cada dia automatizada e isenta de processos duradouros. Ao erigir esquemas de socialização, esses procedimentos reificam e reduzem a complexidade humana, manifestada tão somente por particularidades que determinam modalidades de subjetivação. Nessas condições, os diferentes modos de passagem inerentes à enunciação subjetiva têm suas faculdades comprometidas pela repetição, pela insistência em pôr em estatísticas dinâmicas existenciais.
Ao contrário do que pensa e reitera o universo das Big Techs, o humano cabe onde o corpo possa sonhar, atento aos detalhes que suscitam e deslocam vontades, aproximado à poética que nos diferencia do mero utilitarismo, tornando a realidade desejável. Sistematicamente, essas imagens compartilhadas questionam o trabalho e a sensibilidade, a valorização e o respeito com artistas, mas também objetam a continuidade das formas históricas de dominação e expropriação. Afinal, trata-se de imagens que contribuem para o fortalecimento de estruturas que se beneficiam da “acriticidade” e falta de letramento digital dos usuários, reafirmando o cenário tecnológico enquanto espaço de disputa. O desafio, para além de ações regulamentares, é tornar a atenção aos desdobramentos estéticos e éticos da vida cotidiana, tanto ao repensar o retrato indiferenciado que fazem da humanidade quanto a tornar possível alternativas à soberania computacional, tendo em vista que somente a descentralização do pensamento se opõe à catástrofe que se avizinha. E essa atitude, quanto mais cedo for tomada, diz respeito ao que pode nos reservar o futuro.
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