Ao som de This Bitter Earth (por Dinah Washington), vemos Madeleine emergir no seu passado; memórias melancólicas de um tempo difícil tomam a tela, e nos deixamos levar para a sua vida há mais de 60 anos. A letra da canção conduz o fio da narrativa de sua personagem: “Hoje você é jovem, muito em breve você estará velho”. A vida acontece em um piscar de olhos, e no banco de passageiro vemos sua versão mais nova materializada ao seu lado, presente e passado ocupando o mesmo espaço. A cena reforça que em cada um de nós levamos todas as versões que são constituídas com o passar do tempo, e na velhice todas elas coexistem, cedendo espaço para reflexão de um tempo desbotado, que se faz presente por meio da memória.
Há uma certa tendência no cinema francês contemporâneo que comunica o momento em que a sociedade pós-pandemia se encontra, a busca incessante por relembrar o que somos. Por este motivo é um cinema conduzido pelo contexto, que desvela as alegrias, tristezas e necessidades de seu tempo e a busca desenfreada em entender a memória e o passado revisitado. Conduzindo Madeleine não é diferente dessa vertente, proporcionada por uma espécie de road movie a acompanhar uma senhora no auge de seus 92 anos, a caminho de uma clínica de repouso para idosos, que será sua casa a partir de agora. Madeleine (Line Renaud) é conduzida por Charles (Dany Boon), um homem que enfrenta problemas financeiros e uma crise de meia idade, rabugento e introspectivo, que se deixa levar pelos encantos da primeira, transformado pela recente relação de amizade entre os dois.
O cinema de Christian Carion é construído por imagens de uma Paris moderna com resquícios de um tempo pretérito, na qual o presente e o passado coexistem. Somos conduzidos por suas ruas marcadas pela guerra, lutas e mudanças visíveis e invisíveis. Nesse sentido, o filme é construído por bases nostálgicas, cuja brecha é atendida pela necessidade de Madeleine em visitar os lugares que fizeram parte de sua vida, sendo cada parada um convite para rememorar as vivências que reacendem o presente. O filme se apresenta em uma forma de ode à rememoração, marcada por elementos que vão desde uma dança com um amor perdido a lágrimas frente à injustiça de seu tempo. A corrida é conduzida em um tom de saudade, expresso pela própria Madeleine, como a última de sua vida e, por isso, a mais especial. Há um tom de doçura em desnudar a personagem, em semelhança com os sonhos, desejos e vontades que Charles esqueceu com o passar do tempo. A correspondência desabrocha, e a viagem adquire tons referentes à finitude da vida, o seu amor pela fotografia e a esposa, fazendo-o lembrar que ainda existe esperança mesmo nas adversidades.
A película possui uma estrutura similar ao clássico norte-americano Conduzindo Miss Daisy (1989, dir. Bruce Beresford), que utiliza a viagem de carro entre duas pessoas socialmente diferentes para construir uma amizade e modificar a visão de vida dos envolvidos. No entanto, a fita de Beresford aposta em debates raciais, de classe e anti-semitismo do sul dos Estados Unidos permeados pelo olhar da década de 80. Em contraposição, Carion aponta para uma narrativa preocupada em desvendar o meandro da memória de uma pessoa, servindo como uma porta de entrada para discussões acerca de embates geracionais e o sentido da vida. A entrada de Madeleine na vida de Charles o leva a pensar sobre os caminhos que está seguindo, ao mesmo tempo que revela como um trabalho de motorista, que é baseado no movimento, pode trazer a inércia dos sentimentos, gerando um estado de letargia.
A narrativa possui uma preocupação pontual em demonstrar a condição a que uma mulher branca dos anos 50 estava sujeita, se apoiando na estrutura patriarcal de submissão em que as mulheres são vítimas. A fim de gerar identificação, Madeleine pode ser minha avó, minha mãe ou até eu mesma, expondo que não estamos livres de passar por adversidades provindas de seu contexto. Contudo, o filme peca em conduzir as memórias de Madeleine por meio de flashbacks, uma escolha que se mostra preguiçosa e clichê da direção, que poderia investir na potencialidade narrativa da protagonista. As suas palavras seriam o suficiente para acessar suas memórias, levando o espectador a ter um papel mais ativo em imaginar as adversidades e felicidades da protagonista. O final apresenta um tom agridoce tal como o fim de uma viagem, em um misto de alegria e tristeza, tal como a vida é, o que deixa em evidência o porquê de ter obtido tanto sucesso em seu lançamento na França e no Festival Varilux. Não obstante, Conduzindo Madeleine encanta por meio de uma fórmula pronta, deixando claro que o cinema é o mais belo meio de transporte para uma viagem pelas memórias.
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