
O tempo é um fenômeno, no mínimo, curioso. Há quem adote a percepção unilateral, metódica e inevitavelmente relevante de que a passagem do tempo nada mais representa do que um progresso contínuo de números e frações, outras que convencionamos utilizar como uma possível contagem, uma possível delimitação ou compreensão de mundo. É uma postura mais do que ingênua, entretanto, ignorar as nuances que preenchem o fluxo dessa passagem e as vértebras de um tempo que não existe, mas que é constantemente construído. O passar do tempo conduz outras passagens, outros fluxos. Ora, mal passam-se as estações, as flores desabrocham, as árvores secam, os rios congelam e, com a nevasca, vem a neve. Dessa forma, apesar de sua conjectura dar-se predominantemente na estação de inverno, é a partir do aspecto da transitoriedade que Sol de inverno transmuta a sua narrativa. Nessa história, não somente a noção de tempo é assimilada como também é articulada as formas outras de reconhecer o inverno, e consequentemente, suas paisagens, os outros e a forma com que se relacionam entre si e com o mundo diante do tempo que escorre de suas mãos. Entretanto, enquanto o longa-metragem toca o plano cinematográfico de forma simples, ele adquire na sua forma uma sutileza descomunal. Durante este texto, portanto, pretendo ensaiar de que maneira a consciência tátil e sonora sobre as sutilezas da linguagem possibilitam ao filme construir uma narrativa delicada e que, ao mesmo tempo, transforma-se em palco para uma estética singular.
Takuya (Keitatsu Koshiyama) é um jovem garoto que aspira ser um jogador de hóquei. Assim como em outras estações, o menino demonstra sutilmente a sua aparente inabilidade e desafeição com os esportes que costuma praticar, independente da pressão exercida por seus pais. Após um de seus treinos, inesperadamente — pois havia demorado a guardar o seu equipamento —, Takuya acaba por presenciar a ocupação da pequena pista de gelo por uma movimentação que, para ele, era incomum. Aquele torna-se o espaço em que as meninas treinam a patinação artística, sob a supervisão do instrutor Arakawa (Sosuke Ikematsu). O olhar encantado do menino o leva a ficar sozinho depois que a pista é esvaziada e à tentativa de mimetizar, à sua própria maneira, os movimentos realizados por aquelas meninas – seus giros, balanços e delineados que deixam no gelo. Arakawa, cuja atenção é atraída pelo garoto, permite se afeiçoar por ele e integrá-lo na prática da patinação artística ao lado de Sakura (Kiara Nakanishi). É através dessas três figuras e de sua relação que Hiroshi Okuyama – diretor do longa – conjectura um eco ritmado entre imagem e som que conquista o espectador em sua própria simplicidade.

I
Uma das linhas de abertura que nos possibilita adentrar um filme é a imagem. Como em um gesto de consolação, a imagem costuma estar associada à responsabilidade, em conjunto com o diálogo e o discurso, de nos contar uma história. A sublimação poética da criação cinematográfica, no entanto, é caracterizada, possivelmente, pela ruptura da vértebra que firma as convenções narrativas. Em outras palavras, não há forma melhor de distanciar-se da linguagem direta e explicitamente descritiva do que encontrar outras maneiras de narrar, logo, outros modos de conduzir o espectador por um limiar de sensações, ora singulares, ora comuns aos indivíduos. Em Sol de inverno, uma das primeiras percepções que temos dessa consciência sobre a linguagem cinematográfica é o uso da câmera, cujo movimento é realizado de forma relativamente sutil. Me refiro à sua relativização justamente pela maneira como essa câmera interpreta, no corpo e nas faces dos personagens, o potencial realce de suas emoções – a ansiedade de Takuya ao observar o treino de patinação artística e descobrir um desejo próprio e incomum, o orgulho e alegria de Arakawa ao perceber os resultados de seus dois alunos. Dziga Vertov – o conhecido realizador soviético – acreditava que a câmera, mais do que o olho humano, conseguia revelar verdades outras – o olhar, a paixão, a dor e a nostalgia –, com o auxílio da montagem e outros efeitos de técnica e estilo. Essa mesma imagem, inicialmente estática, subverte o próprio regime e adquire movimento, mediante a própria percepção do movimento desses personagens, sobretudo nos momentos em que patinam no gelo, onde o exterior parece ser congelado e a realidade e o tempo suspensos diante do espetáculo que delineiam nesse pequeno espaço.
Cabe a nós percebermos, além disso, como o cinema se realiza também no gesto de olhar para o mundo e, consigo, para suas paisagens. No longa, o inverno torna-se o que podemos conceber como espaço-paisagem, uma espécie de palco ou estrutura – aqui esta é evidentemente natural – na qual se reforça uma estética. Os corpos dos três protagonistas, sob o regime do frio invernal, adquirem sobre si uma nova visão e, portanto, uma nova forma de se comportarem e se relacionarem: com o espaço, com o tempo e consigo mesmos. Não me refiro especificamente ao fato concreto de, no inverno, sentirmos a necessidade de usar casacos e luvas, ou na possibilidade de, ao experimentar um chá quente à noite, nos deleitarmos com a oportunidade de um corpo devidamente aquecido e, ao mesmo tempo, com a ideia de que a neve há de derreter, e de que certas emoções e estados de ser – como nos apresenta Okuyama – são passageiros. Conscientemente e metaforicamente, esse espaço-paisagem, revestido pelas cores leves e claras iluminadas pelo Sol de inverno, pela luz que invade a pista de patinação e que se combina com o aspecto de névoa deixado pela abertura da lente fotográfica nos permitem encontrar na efemeridade dos sujeitos, formas sutis de sentir a si, suas paixões e seus sonhos.

II
À imagem é também incorporado um fluxo contínuo com o som, que estabelece um vínculo admiravelmente direto e por vezes igualmente metafórico por parte do longa. Esta nos permite, tal qual o olhar através das lentes da câmera, expandir os sentidos e a percepção sensorial da delicadeza com que se movimentam Takuya e Sakura, no uníssono de sua patinação no gelo. A saber, Claire de lune, a peça composta pelo músico e compositor Claude Debussy, funciona como uma espécie de fio condutor – ou leitmotiv – melódico sob o qual a personalidade das crianças, assim como a do instrutor, são lentamente tecidas. É também através da melodia que, de forma igualmente inexplicável, os três dançam sob a luz do sol, na superfície congelada de um rio, em perfeita, alegre e espontânea harmonia, que, entretanto, não há de escapar do maior motiv: a passagem do tempo. Ao descobrir que o seu professor se relaciona com um outro homem, Sakura questiona um possível favoritismo que o homem demonstra por Takuya, o que a leva a abandoná-los na tão aguardada competição de patinação artística e, posteriormente, a deixar Arakawa sem alternativas, senão retornar à cidade grande em busca de outras oportunidades de ensino.
Acredito residir aqui o cerne de muitas das discussões em torno do longa que têm surgido desde a sua primeira exibição no festival de Cannes, que fragmentou a unidade de espectadores em alguns questionamentos. Em linhas gerais, essas indagações, que perpassam desde a confluência dos corpos à afirmação de que as discussões sobre gênero, sexualidade e infância que são abandonadas ou, ao menos, relegadas a um plano inferior do filme, parecem deixar de lado toda uma matriz circunscrita no gesto do olhar – que é tão bem caracterizado no filme. Como bem vimos, é na passagem do tempo que são decupadas verdades outras, delicadamente esboçadas em cada plano de imagem e som – cabe aqui exaltar mais uma vez a elegância melódica do piano e dos silêncios. Se nos permitimos enxergar Sol de inverno como um filme cinematograficamente bem construído, isso se dá puramente pelo fato de sua composição encontrar, no próprio gesto de narrar, a despretensiosidade e a insignificância em se autoexplicar e/ou autorreferenciar. Hiroshi Okuyama notadamente aceita o desafio de não contar a nós, espectadores, uma história. Mais do que isso, permite ao longa mostrar, nos rostos impassíveis e nos corpos que dançam com demasiada alegria e contentamento, na tensão e na neve que derrete, que, metaforicamente, a condição ora subjetiva, ora social, logo, as pontes entre o eu e o outro, não são estáticas, tampouco concretas. A rigor, nada o é. Tudo é escorregadio e está sujeito a derreter. Como a neve no inverno.
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