“O que torna uma imagem intolerável? A pergunta
parece de início indagar apenas que características
nos tornam incapazes de olhar uma imagem
sem sentir dor ou indignação.”
Jacques Rancière
Pensar as imagens e o seu modo de criação passa por um julgamento moral e sensível que é resultado das experiências de cada indivíduo. O filme Guerra Civil (2024, dir. Alex Garland) coloca em jogo a moderna setorização das imagens como tolerável ou não, através da ludicidade política pela qual essas figuras se apresentam no mundo, atravessado pela midiatização desses retratos, questionando não apenas o seu processo de feitura, mas também quem é o fabricante dessas imagens. É refletindo sobre esse criador que a narrativa segue a protagonista Lee Smith (Kirsten Dunst), uma fotojornalista que construiu sua notoriedade por meio da documentação de contextos de guerra ao redor do mundo e agora lida com o registro de um confronto em seu território. A protagonista é posta em contraste com outra personagem, Jessie Cullen (Cailee Spaeny), uma jovem que visa a uma carreira como fotojornalista, porém parece não entender ainda as provações desta profissão. As duas, junto a outros dois jornalistas, Joel e Sammy (Wagner Moura e Stephen Henderson), mentor da Lee, partem até Washington, D.C. em busca de uma entrevista exclusiva com o atual Presidente dos Estados Unidos.
Dessa maneira, toda a narrativa é estimulada por esse encontro com o Presidente, sendo Lee motivada pela foto, Joel pela inquirição e Jessie pela oportunidade; por outro lado, pouco se comenta da disputa que nomeia o filme. Isso é consequência da direção de Alex Garland, que parece estar pouco preocupada em mastigar as razões do conflito para o espectador, um ponto que poderia ser visto como positivo — entretanto, compreende-se que existem forças separatistas lutando contra o governo americano, em um embate bastante violento, estabelecendo uma narrativa distópica na obra. Assim, os personagens são dispostos em cena semelhantes aos espectadores, pouco envolvidos com os motivos que levaram à guerra, mas muito tocados pelos seus efeitos. Contudo, Lee passa a maior parte do filme demonstrando pouca afetação pelos cenários do conflito, e a justificativa que a montagem revela ao espectador são memórias de Lee em vivências cruéis semelhantes às atuais. Daí, voltamos à questão das imagens intoleráveis, e esse recorte do filme se conecta diretamente à indagação feita por Rancière acerca da escolha por comover o espectador com imagens brutais, embora questionando o quão tolerável é uma representação para sensibilizar o público sobre a frieza de uma personagem. Talvez a escolha que a direção de Guerra Civil toma não seja nem falha, nem assertiva, mas apenas um reflexo de um público que pouco se sensibiliza com as dores do irrepresentável. As experiências de Lee são somente suas, dessa forma, as tentativas de compartilhá-la por intermédio da linguagem cinematográfica é uma labuta a qual Garland faz o que lhe é possível e o faz de modo competente. Além disso, o desenvolvimento de Jessie dentro desse embate é mais uma tentativa de compartilhar por meios miméticos as experiências de alguém “verde” nesse contexto bélico, que vai evoluindo e se tornando “mais maduro”.
Ainda pensando nos personagens, a obra Guerra Civil sabe como representar bem essas pessoas, sem manifestar suas opiniões óbvias em relação à disputa. Essa característica pode soar como uma omissão do caráter crítico a um certo tipo de política, mas é por essa razão que o filme se torna ainda mais atual, em virtude de entender os impasses desse clamor por uma arte sem partido, uma imprensa sem partido, uma vez que a sublimação dessas noções políticas resulta em disputas as quais o único motor é o confronto em si. Isso é apresentado quando Joel, Lee, Jessie e Sammy têm sua passagem obstruída por um boneco de Papai Noel ao lado do corpo de um homem morto na estrada. Eles saem do carro e logo notam que são alvo de alguém disparando tiros de um lugar distante, o momento no qual eles fogem para um abrigo entre dos destroços da estrada, eles encontram dois soldados procurando onde esse suposto atirador está. Joel pergunta para um dos soldados em qual lado o atirador estava, se estava a favor do governo americano ou com os separatistas, a resposta do soldado foi que não importava o lado, a única coisa relevante naquele instante era o conflito. Por isso, em muitos momentos o filme mostra uma imprensa que é imparcial e sem personalidade, com sua van branca a qual o único resquício de identidade é a palavra “press” (imprensa), apesar disso, essa imprensa ainda é alvo de violência.
Então, tirando a obviedade narrativa presente na obra, que segue a lógica do cinema americano de clímax e resolução, casados com comicidade, o longa-metragem acrescenta apontamentos bons e necessários para as questões debatidas nos âmbitos relativos à construção de imagens e as responsabilidades desse criador. Ademais, existe um claro reflexo entre o produto artístico e os autores que o construíram, posto que aqueles que foram gestores da produção do filme também encaram as encruzilhadas de serem fabricantes de imagens e ideias. A metalinguagem do papel do produtor de imagens é vista de um modo mais visceral em uma das cenas iniciais durante um embate no qual Jessie tira uma foto de Lee enquanto esta registra com sua câmera algumas pessoas feridas. Nessa cena, existem dois elementos: o de quem cria e o de quem constrói através do processo de criação. Portanto, o contexto em ambos os cenários importa para entender a escolha da direção em tolerar as duas imagens sendo produzidas naquele momento, voltando mais uma vez para a citação inicial. O ato de Lee em criar naquelas circunstâncias remete a uma vivência que apresenta urgências as quais precisam ser reveladas, e a ação de construir uma peça artística como Jessie também expõem imperatividades daqueles indivíduos. Talvez o trabalho cuidadoso dessas sensibilidades seja o principal mérito de Guerra Civil.
Referências Bibliográficas
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
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