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A Composição do Passado

Foto do escritor: Wandryu FiguerêdoWandryu Figuerêdo


A câmera, inicialmente em coordenação documental, com uma mulher se dirigindo à película em estilo de talking head, dialoga sobre uma casa abandonada que recebeu uma nova origem. Ao explorar o interior, ela se depara com outra mulher, e ambas se questionam: "O que você está fazendo aqui?". A intensidade do olhar direto para a câmera persiste, enquanto ela relata uma experiência de invasão durante a qual fugiu e a antiga casa simplesmente desapareceu. Em seguida, a montagem nos transporta para um novo cenário, em um espaço-tempo distinto, onde somos imersos em uma geografia desconhecida. A única percepção são os faróis de carros lutando para atravessar a materialidade da neblina e as nuvens ao anoitecer.


No  cenário, visualmente marcado pela dualidade do preto e branco, somos transportados na história de Muzi, que retorna à sua cidade natal após cinco anos, durante um inverno chuvoso, para visitar seus pais. Ao longo da narrativa, somos conduzidos por conflitos internos que ecoam as memórias de uma protagonista em busca de autoconhecimento. A sua transparente desordem emocional leva a encontros significativos mediante indivíduos que desempenham papéis cruciais nessa jornada de redescoberta da personagem. Mesmo que signifique alguns instantes, a maneira encenada conforme desenvolvida, mesmo quando envolvem banalidades do nosso meio, como o cotidiano, atos sexuais e antigos amores, essas linhas de diálogo também criam questionamentos em volta do que seria esse resgate do passado e concretização do momento presente.


Em períodos em que os enredos se desenrolam na tela, mas também os períodos que a personagem se comunica com o espaço através dos seus curtos passos na rua, estabelecendo uma proximidade entre os personagens e seus gestos, a câmera adota uma abordagem de distanciamento. Como também, em situações que evocam sensações táteis, como em cenas mais explícitas entre os dois amantes, há uma movimentação na composição que sugere um sentimento de vazio. Antes das explosões emocionais, os corpos se movem como se estivessem carregados de conflitos, ansiedade e um desejo de fuga. O que torna essas imagens poderosas é a sinceridade interpretativa dos planos, que nos permite ver o mundo através dos olhos de Muzi, naquele campo geográfico específico. O filme está o tempo todo dialogando com o vazio, mesmo no meio da excitação sonora e dos close-ups.



Outro elemento crucial da mise-en-scène que amplia essa sensação de intimidade está nos momentos em que os personagens se dirigem diretamente à câmera. Como na primeira cena da obra, os coadjuvantes oferecem breves depoimentos sobre a protagonista e a localidade, Hangzhou, caracterizada por uma profusão de veículos e uma escassez de pessoas. Além disso, há um interessante experimentalismo visual, com sobreposições de imagens de alto e baixo contraste, que conferem uma expressão semântica única, recontextualizando esses intervalos de respiro, nos quais não vemos os personagens, mas sim Hangzhou desprovida de presença humana. Em outro momento, a saturação visual atinge níveis extremos para destacar um beijo entre Muzi e sua amiga, oferecendo uma das representações mais sensíveis de um encontro entre duas composições físicas.


O título da obra, evocando uma "nuvem" composta de partículas nítidas, encontra seu desfecho em uma foto tirada pelo ex-namorado de Muzi, que pede que ela feche os olhos por alguns instantes. Nesse registro da mulher que ele amou e odiou por tanto tempo, ele captura a imagem e foge, deixando Muzi sem reação, com seus olhos fechados. A sequência final apresenta a demolição de uma casa; mas, ao invés de uma fotografia, testemunhamos sua destruição material em questão de uma câmera observativa. Esse desfecho sugere uma interpretação profunda, pois reconhecemos que esses segundos fugazes podem ser mais angustiantes do que um simples fragmento de uma imagem tirada de uma máquina fotográfica.


O filme está disponível no catálogo da Filmicca.

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