A Última Sessão faz uma curadoria dos sonhos em seus minutos iniciais. Tocado por suas obras, o diretor Pan Nalin cita mestres como Stanley Kubrick, Andrey Tarkovsky e David Lean, e os homenageia nos créditos de abertura. Como Samay (Bhavin Rabari), seu indomável protagonista, o cineasta nunca deixou de sonhar, revelando a cada plano o seu desejo de ainda o fazê-lo. O filme aborda os que praticam dominar a luz, mas se torna refém dos que o ensinaram.
Talvez seja injusto atribuir essa relação a um filme que trabalha uma ideia de cinema emergente. Em suas idas clandestinas à sala de cinema, Samay assiste a diversos filmes indianos, iconográficos, religiosos, representantes de uma cultura pujante. Com a ajuda do projecionista Fazal (Bhavesh Shrimali), ele perpassa filmes policiais, dramas históricos e épicos de Bollywood. O encantamento é a síntese do objetivo de se tornar um grande cineasta.
Espécie de primo indiano do clássico Cinema Paradiso (1988, dir. Giuseppe Tornatore), à exceção do acompanhamento de seu protagonista até a vida adulta, o longa de Pan Nalin tem sua força no reconhecimento da própria ingenuidade. Se a narrativa é conduzida por um garoto que ousa capturar raios luminosos, nada mais justo que o projeto se desenhe — ou pelo menos tente — à sua maneira.
A inocência guia a atmosfera solar que aquece as sequências de roubo das latas de película. A potência das crianças, correndo de um lado a outro, mimetiza a própria impressão de movimento. Temos uma espécie de busca pelos elementos primordiais de uma imagem, dissecando sua composição, da tridimensionalidade desenhada pela fotografia à profundidade de campo que costura personagens e paisagens.
Com base na materialidade entre as mãos do jovem e a própria matéria de seu combustível, é interessante como o filme aposta em jogos de palpabilidade. A película, o movimento, a técnica amadora, a câmara escura doméstica, são elementos que procuram uma trajetória comum na vida de Samay. Ele tem um fascínio muito maior pela sugestão do que pela concretude, os traços suspensos por um projetor são mais interessantes que o desenho feito em tela.
Ainda que o filme reconheça o fascínio com essas possibilidades — o cinema em destaque, aqui, é sempre aquele em processo, nunca o concreto —, nem por isso consegue incorporar a invenção como próprio cerne, especialmente na forma como se submete a uma influência externa.
Com o olhar quase sempre distante, seja da cabine de projeção, por detrás dos bancos do público pagante ou por meio de rachaduras na parede, as influências que tomam a tela são passageiras. A sua engenhosidade se resume à imersão estética pasteurizada pelo cinema norte-americano. Surge a urgência de não se perder essa conexão entre espectador e tela em nenhum momento, e essa troca deve ser a mais efetiva possível.
Nesse sentido, entretanto, Nalin abre mão do retorno. Ele anula a possibilidade de outras interpretações, e pende ao maniqueísmo de uma inocência sedutora. É como se o acabamento nostálgico, estético, deixasse de reconhecer as condições de um cinema contra hegemônico como parte de sua força. Seria igualmente injusto obrigar essa potência a reproduzir eternamente as mesmas histórias, retratar os mesmos arquétipos e elencar suas dificuldades como bases dramatúrgicas.
Mas é na encenação mais plástica que A Última Sessão reproduz exatamente esses estigmas. O filme incorpora o imaginário dos grandes estúdios hollywoodianos, sonhando com uma fotografia higiênica e lentes que projetam um perfeccionismo visual a cada instante.
Ainda que a imaginação de Samay seja tocante de se testemunhar, os produtos de sua “versão futura” — o filme nada mais é do que uma semi-biografia — são medidos por equação. Assumem um teor publicitário que se resume, didático e transparente, à cristalização de sonhos e desejos.
As cores quentes artificializam um conforto constante. Os planos longos, atentos a todos os detalhes, não deixam margens a serem preenchidas pelo observador. O cinema se torna um exercício fechado em si, que pouco compactua com o espírito de Samay e seu grupo de amigos. Dos campos terrosos, dos feixes de luz incertos e dos grãos que saltam da película, surgem retratos de uma concretude distante, temerosa em reconhecer o seu verdadeiro alcance, incalculável e imprevisível.
É curioso que o próprio filme retrate o momento histórico de transição, na Índia, do cinema analógico para o das câmeras digitais, fazendo do recorte um comentário sobre a valorização das mudanças, a necessidade de se preservar a essência, ainda que ela mude de formato. No processo, entretanto, acaba optando pelo conservadorismo de pensar as próprias imagens, com alguma hipocrisia.
Por mais caloroso o resultado, A Última Sessão se desvia das potências que um cinema de emergências e eclosões poderia oferecer. Ainda que demonstre um bom domínio sobre a sua materialidade — as mãos, os movimentos, as tiras analógicas —, o filme prega por uma higienização herdada de formatos estrangeiros. Deve-se recuperar o orgulho de ser criança, de um mundo menos domesticado, com maior intercâmbio entre imagens e significados. Não se pode sonhar com medo de adormecer.
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